Lord Jim, Joseph Conrad
- Ismael Luz
- 8 de out. de 2024
- 14 min de leitura

[olho]
Influenciado por leituras de aventuras e heroísmo e por uma rígida educação paterna, Jim entra na marinha mercante em busca de uma vida de bravura e nobreza. Mas quando se depara com uma situação em que seu caráter é posto à prova, sucumbe à pressão dos companheiros e abandona à morte todos os passageiros do navio onde exercia a função de imediato. Atormentado pela sua consciência, isola-se, sente-se perseguido pelas imagens do seu crime. Procura a redenção, uma nova oportunidade de se mostrar leal, bravo, herói. Conseguirá?
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Embora seja um dos autores mais famosos da literatura inglesa, Joseph Conrad era polonês e passou uma parte de sua vida trabalhando como marinheiro a bordo de navios mercantes franceses e ingleses no final do século XIX. Seus romances permitem uma reflexão sobre os efeitos do imperialismo e do colonialismo que as potências europeias praticavam na África e no Oriente e muitos dos seus heróis são marinheiros que andam numa corda bamba entre a coragem e a covardia.
Lord Jim é parte desse repertório. O protagonista Jim é um jovem oficial da marinha mercante britânica que é bravo nas intenções e covarde nas ações, o que faz dele um homem marcado pela infâmia.
O esquema narrativo empregado por Conrad é bastante complexo. O autor o chamava de visão oblíqua, por quebrar a sequência temporal ou cronológica da história trazendo passagens do presente ao passado e vice-versa, servindo-se de diferentes narradores.
A crítica literária da época em que foi publicado caiu matando em Joseph Conrad por conta disso, chamando Lord Jim, entre outras coisas, de "estudo de personagem mal esboçado, escrito e reescrito ad infinitum, dissecado até se despedaçar, mastigado até não ter mais sabor", afirmando que a história “é contada por um personagem alheio à ação, uma navalha chata e faladora que filosofa”, que era "uma narrativa muito deslocada, um romance informe" e mais, que se tratava de "uma história que vagueia de um lado para outro [...], um pântano de linguagem extraordinária e acontecimentos incompreensíveis".
Eu tenho de concordar com tais críticas ácidas, pois precisei resistir bravamente à confusão de perspectivas, trocas de narradores, cortes e outras coisas mais, para terminar a leitura. Impus-me um desafio de concluir na expectativa de encontrar muitos significados para descompactar e extrair de Lord Jim algo elevado.
A seguir, farei um resumo comentando e cronologicamente ordenado, cheio de spoilers.
Jim é um jovem de boa família, amante da literatura náutica, que sonha em ser herói dos mares. Durante o processo de capacitação para habilitá-lo a navegar, recebeu um alerta de socorro no barco de treinamento em que estava a bordo, que é enviado para resgatar os passageiros de dois navios que colidiram. Jim não integra a equipe de resgate devido à lentidão de sua reação.
Ao completar dois anos de treinamento, ingressa na Marinha Mercante e rapidamente galga posições na hierarquia, chegando ao posto de imediato, embora nunca tenha enfrentado uma situação grave que pusesse à prova o mérito dessa designação, uma vez que o imediato é o oficial que está logo abaixo do comandante e assume as funções deste caso esteja incapacitado ou impedido. Na prática, é um comandante substituto.
Durante sua primeira tempestade real, foi ferido pela ruptura de uma verga que o obrigou a permanecer acamado até que pudesse desembarcar na próxima escala.
Depois, Jim se torna o imediato no Patna, um navio em más condições e comandado por um violento capitão alemão, que transporta muçulmanos em peregrinação a Meca. Embora o mar estivesse calmo, o barco sofre um violento tremor. Nesse momento, o capitão discutia com um bêbado da tripulação. A tripulação, incluindo Jim, acredita que um naufrágio submerso abriu um curso d'água no fundo da embarcação e decide abandoná-la sem socorrer os passageiros. O Patna, porém, não afundou e foi rebocado até o porto onde a tripulação se refugiou. Uma investigação é então aberta e toda a tripulação, exceto Jim, foge. Ele é o único a ser julgado, recebendo uma punição branda diante da gravidade da omissão de socorro: seu certificado de oficial foi retirado, ficando proibido de exercer a profissão. É durante o julgamento que conhece o Capitão Marlow, que deixou a vida de homem do mar para tornar-se vendedor de suprimentos para embarcações.
Marlow rapidamente torna-se amigo de Jim, que lhe conta sua história e se beneficia de sua ajuda para encontrar um emprego. Mas Jim continua obcecado com sua fuga do Patna. Ao ser confrontado com insinuações ou situações que o lembrem de sua culpa, foge novamente (quando, por exemplo, clientes inocentemente mencionam o navio), ou torna-se violento, jogando no chão um tenente dinamarquês que faz referência ao episódio. Após essa ocorrência, Marlow oferece a Jim uma oportunidade de trabalho na Indonésia, onde acaba confiando-o ao comerciante Stein.
A pedido de Marlow, Stein dá a Jim a missão de assumir as responsabilidades do Agente Cornelius num lugar chamado Patusan, localizado em uma área de selva, perto da foz de um rio, onde moram duas comunidades. Os pescadores vivem em uma vila costeira no delta, e os moradores vivem no interior, na confluência do rio, perto das colinas.
Pouco depois de sua chegada ao Patusan, Jim é feito prisioneiro por Rajah Tuku Allang e seu aliado Xerife Ali, dois senhores da guerra locais que oprimem a população. Após sua fuga, ele administra os pescadores, os Bugis, que lhe dão confiança e estima. Jim então pensa que recuperará sua honra perdida por meio deles. Ele se apaixona por Joia, enteada de Cornelius. Torna-se amigo de Dain Waris, filho de Doramin, chefe nativo dos Bugis.
Um dia, um pirata britânico chamado Brown ataca o Patusan em busca de provisões. Depois de uma escaramuça com os homens de Dain Waris, Brown e sua tropa se refugiam no topo de uma colina e negociam sua partida com Jim. Cornelius está com ciúmes porque Jim assume a liderança e se alia secretamente contra ele com Rajah Allang e Brown. Cornelius guia os homens de Brown até o acampamento de Dain Waris, que é morto no ataque. Jim, assombrado por sua culpa no Patna e seus sonhos não realizados de heroísmo, decide ir para o acampamento de Doramin, para que este o mate, esperando com isso finalmente ter o fim que merece.
Após a morte de Jim, Marlow reconstrói a história de seu amigo a partir de entrevistas com aqueles que o conheciam. Ele primeiro conta a história oralmente, depois através de cartas.
Até aqui, temos um resuminho coerente, sequencial da coisa toda. Daqui para frente, vou passar para você como Joseph Conrad foi soltando a história.
Nos três primeiros capítulos temos um narrador onisciente que conta eventos marcantes do passado do protagonista. No quarto, estamos na sala onde ocorre uma audiência e nela conhecemos o Capitão Brierly, que fez parte do júri que julgou Jim pelo abandono do Patna. Brierly foi um jovem comandante que se matou aos 32 anos, lançando-se ao mar. Há um trecho bastante pungente no livro em que Jones, marinheiro preterido à posição de capitão em favor de Brierly e de quem naturalmente passou a nutrir desdém, conta ao Capitão Marlow as últimas horas de Brierly antes do suicídio. Que terrível notar que o jovem planejou os mínimos detalhes de suas ações, para que não despertassem qualquer suspeita, atirando-se ao mar de madrugada. Fiquei um bom tempo refletindo sobre a tristeza dessas pessoas que não querem mais viver e a tragédia desse fim súbito para os que ficam. O relato do outrora desafeto Jones é de cortar o coração.
Deste ponto em diante, o Capitão Marlow é o narrador a maior parte da história
Até o capítulo 10, ainda não havia entendido claramente quem era Lord Jim. Parecia estar preso por ter fugido do navio em que era imediato sem socorrer os passageiros.
Foi apenas no capítulo 11, mais de 60 páginas do livro, que Lord Jim entrou oficialmente na história. Capitão Marlow para passar o tempo acompanha algumas audiências e inquéritos, e num deles Lord Jim está depondo sobre a tragédia do Patna. Na saída deste do fórum, Marlow e ele se estranham, beirando a agressão física, mas conseguem superar essa topada com o pé esquerdo e saem para jantar.
Nas próximas páginas vamos entendendo o que se passa: Lord Jim era imediato de um navio que naufragou. Enquanto transcorria o inquérito para apurar responsabilidades inerentes à tragédia, a carteira que autoriza o exercício da profissão está confiscada e sem isso a carreira de homem do mar lhe é impedida. Por consequência, está sem dinheiro e preso em algum país do oriente, que suspeito ser a Índia, por conta de algumas descrições dos habitantes do lugar e seus costumes.
Durante uma madrugada, uma chapa de ferro perfurou o casco do navio, enquanto 800 passageiros dormiam, em sua maioria peregrinos rumo a Meca. O capitão, seu imediato e dois mecânicos fogem.
No trecho a seguir, veremos a paralisia de Jim diante da missão de acordar quase mil pessoas e organizar o socorro sem que houvesse chalupas em quantidade suficiente para todos. Jim congelou ante a ameaça iminente de morte.
“Era, conforme dizia, a segunda vez que seu capitão o enviada à proa, pois este, em meu parecer, queria antes de tudo afastá-lo do passadiço. Dizia-me que seu primeiro movimento fora de lançar um grito e fazer erguer-se toda aquela gente, arremessá-los do sono no terror, mas experimentou um sentimento tão acabrunhante de impotência, que não pôde proferir um único som. É isso sem dúvida o que se quer dizer quando se fala da língua presa ao céu da boca. – Muito seca – dizia-me concisamente para explicar a sensação. Subiu, sem dizer palavra, ao convés, pela primeira escotilha. Confessava que seus joelhos tremiam, enquanto se detinha a contemplar uma nova multidão adormecida. As máquinas estavam paradas. O vapor saía com um ruído surdo, vibrante. Jim via aqui e ali uma cabeça que se erguia, uma forma vaga e estremunhada que se sentava, escutava um instante, depois deixava-se recair. Em sua ignorância das coisas do mar, não podia aquela gente compreender a significação de um ruído anormal. [...] Jim esperava, como qualquer outro marinheiro em seu lugar, ver o navio soçobrar de um momento para o outro; as placas enferrujadas que sustentavam o oceano deviam fatalmente ceder de súbito, como um dique minado, dando passagem a uma onda brutal e destruidora”.
Adiante, Jim vai se recordando de seu raciocínio na situação: 800 pessoas e apenas 7 sete botes. Acordá-los implicaria em terror, muitos morreriam do mesmo jeito. É uma forma de racionalizar a covardia, a culpa sentida por não ter tentado fazer nada para salvar aquela gente.
A narrativa do naufrágio chega a um ponto de sinistra ironia: a princípio, cinco iam se salvar, mas um dos mecânicos teve um infarto no convés e morreu, bem provável que pelo estresse da fuga. Um temporal se avizinhava e o bote estava emperrado. Depois de conseguirem soltar o bote, os três que pularam primeiro no meio de fuga chamavam o morto, enquanto deixavam conscientemente 800 pessoas vivas que dormiam num navio que já estava afundando.
Assim que o mastro do navio submerge, o remorso pesa sobre os sobreviventes.
Adiante, descobrimos que Marlow está contando a história de Jim ao marinheiro Jones, o preterido do Capitão Brierly de quem falei antes. A escrita de Joseph Conrad é muito sofisticada e sutil, se você se distrair enquanto lê, ficará um tanto confuso, sem entender com quem Marlow está conversando: com Lord Jim, com o marinheiro Jones, com o capitão Brierly ou mesmo algum outro ouvinte. Havia momentos da leitura em que eu precisava reler uma ou duas páginas para compreender. Considerando a diagramação sofrível da minha edição, foi um pequeno sacrifício.
A frente, sabemos que o navio Avondale resgatou os quatro sobreviventes pouco antes do pôr do sol. Pelas minhas contas, não ficaram mais que doze horas à deriva.
Jim disse que os outros afirmaram que logo após soltarem o primeiro barco salva vidas o navio afundou, uma óbvia mentira. Ele não teve coragem de dizer nada.
Mais tarde descobrem que como o Patna afundou de proa, foi encontrado por um canhoneiro que o rebocou com os passageiros apinhados na parte traseira. O único morto a bordo era o mecânico.
Jim, três anos após o incidente, também havia se tornado vendedor marítimo. Na época do naufrágio, tinha 24 anos.
Seis meses após Marlow conseguir convencer Jim a aceitar um emprego na propriedade de um amigo em outra localidade, Jim some do lugar quando um dos mecânicos que abandonou o Patna se emprega na mesma propriedade que ele. A consciência atormentada e o ego ferido não suportam aquela confrontação.
Arranja outro emprego de vendedor de suprimentos numa empresa de relacionamento de Marlow, mas foge de novo quando começa a ouvir conversas sobre o que aconteceu no Patna.
E ele foi de emprego em emprego, fugindo do fantasma do Patna. Num deles, chegou a quebrar um taco de bilhar num provocador, para depois jogá-lo da sacada do bar.
Marlow apela ao velho amigo Stein, um bávaro que há muitos anos morava na Malásia, desenvolvendo um bem-sucedida carreira de mercador e entomólogo, desfrutando da amizade da nobreza local. Conta a história de Jim e pede sua ajuda para o jovem. O homem aventa colocar Jim chefiando a contabilidade em Patusan, um local afastado no distrito indígena.
Jim é acomodado numa casa confortável com uma vista encantadora.
Adiante, Marlow explica porque tanto tentou ajudar Jim, uma piedade generosa, sem interesses ocultos realmente tocante. Para Marlow, Jim não tinha mais como voltar para a Inglaterra, não podia defrontar-se com qualquer coisa que lembrasse a vergonha do Patna e na cabeça de Marlow, poderia transformar-se num sem-teto alcoolizado.
Dois anos após a partida, Marlow vai vê-lo.
Na visita, Jim conta como foi recebido naquela terra desconhecida. Caiu nas graças de Doramin e seu filho ao liderar batalhas contra o rajá e o xerife, que venceu com ideias inusitadas, como colocar canhões no topo das montanhas para bombardear a posição do inimigo, abaixo, ao raiar do sol.
A derrota do xerife o desmoralizou frente a comunidade. Jim passou a ser a autoridade a quem o povo recorria para resolver conflitos, rivalidades. Veja que interessante: um código moral local que supera uma questão institucional.
O que se segue são vários atos de bravura da parte de Jim, transformado em herói no meio do povo.
Jim explica a Marlow que a gratidão do povo, a fama conquistada entre eles de homem de coragem, o faz suportar as lembranças do Patna. Parece que ele se redimiu.
Também encontrou o amor com a mocinha Joia, filha de criação de um português chamado Cornélio, homem mesquinho, sem caráter. Conrad pesou a mão nos elementos físicos e psicológicos para compor a personagem e enfatizar toda sua falta de honra.
A narrativa de Marlow, a partir de um encontro pessoal com o próprio Jim encerra aqui. Dali em diante, ele prossegue com a história a partir de cartas.
Através delas, sabemos que o pirata Brown chega ao Patusan com um barco roubado e uma tripulação de vagabundos esfaimada e em busca de uma oportunidade de pilhagem.
Como comentei antes, a presença de Jim no Patusan abalou as velhas estruturas de poder e o rajá, com o apoio do peçonhento Cornélio, vê em Brown uma oportunística aliança para tirar Jim da parada e voltar a escravizar os nativos.
O fim da história representou a meu ver a única saída encontrada por um Jim que após três anos fugindo da própria ignomínia, vê-se obrigado a encará-la mais uma vez em função das consequências da pura maldade sem propósito de Brown, associada a completa falta de honra, moral e orgulho de Cornélio.
Inspirações para Lord Jim
Sei que os escritores recebem múltiplas influências para compor suas obras. Dado que Joseph Conrad foi marinheiro, acumulou uma multiplicidade de experiências que foram transpostas para suas obras. Como encontrei tantos registros de elementos que inspiraram Lord Jim, farei uma lista deles aqui.
Conrad, enquanto estava embarcado no Vidar, conheceu um certo Jim Lingard, apelidado de "Lord Jim" por sua arrogância. Jim Lingard casou-se com uma mestiça, que no Jim do romance é uma referência a Joia. Tal como Jim, Conrad havia se feriu no SS Highland Forrest em 1887 e, após sua internação, partiu para o Extremo Oriente.
O caso Patna condensa dois incidentes. Em 17 de julho de 1880, um velho navio a vapor, o SS Jeddah deixou Cingapura para Penang, onde embarcou novecentos e cinquenta e três peregrinos para Jeddah, o porto de Meca . Na entrada do Golfo de Aden, ao largo da Somália, uma violenta tempestade transformou o navio em um naufrágio à deriva, as caldeiras foram arrancadas de seus berços e a casa de máquinas inundada. Em 7 de agosto, o capitão considerou que seu barco estava perdido e para piorar não havia botes salva-vidas em número suficiente para resgatar todos os passageiros. Como tinha um barco a remo armado, organizou uma fuga durante a noite, embarcando com sua esposa, o engenheiro-chefe e alguns tripulantes.
Os passageiros percebem a fuga e tentam afundar o barco. Acabam jogando o imediato ao mar, que é salvo pelos fugitivos. Resgatados pela SS Scintia, alcançaram Aden seis dias depois e lá declararam às autoridades marítimas que o Jeddah havia afundado.
Qual não foi a surpresa quando no dia seguinte descobrem que o Jeddah chegou ao porto rebocado pelo SS Antenor. Os criminosos foram levados a um tribunal marítimo e receberam uma sentença vergonhosamente branda: o Capitão covarde James Clark viu sua patente suspensa por três anos e o imediato, Augustine Podmore Williams, uma simples reprimenda.
Conrad soube dessa aventura, inclusive conheceu Augustine Williams em Singapura. Tanto suas características físicas, como biográficas e a fuga do Jeddah indicam que aspectos importantes para a composição de Lord Jim enquanto personagem foram extraídos de Willians. Indubitavelmente, ele fez do medo o motivo da deserção. Para Conrad, essa emoção constitui uma das principais motivações humanas, mesmo o primeiro elemento constitutivo de uma personalidade. Como ele escreveu em An Outpost of Progress, “O medo permanece, não importa o que aconteça. Um homem pode destruir tudo nele, amor, ódio, fé e até mesmo dúvida; mas enquanto se agarra à vida, permanece impotente para erradicar o medo, um sentimento sutil, indestrutível e terrível, que invade seu ser, colore seus pensamentos, espreita em seu coração e contempla em seus lábios a luta de seu último suspiro”.
Três anos depois, em 1883, o próprio Conrad teve que lidar com um naufrágio. Como imediato do SS Palestina, ele se viu, como toda a tripulação, diante de um incêndio em uma carga de carvão ao largo de Sumatra. O navio teve de ser abandonado; uma comissão de inquérito em Singapura isentou os oficiais de toda responsabilidade.
O capitão Brierly, que em Lord Jim faz parte do júri que julga Jim pela fuga do Patna, é na realidade o Comandante Wallace do SS Cutty Sark, que em 1880 facilitou a fuga de Sydney Smith, um companheiro de navio que matou um marujo por insubordinação. Dois anos depois, Smith é preso, julgado e condenado a sete anos de cadeia. Logo após, Wallace comete suicídio atirando-se de seu navio, aos 27 anos.
Afinal, o que achei da obra? Aqui vai minha análise
Joseph Conrad tem um jeito muito peculiar de contar uma boa história. Recorre a narrativa indireta, narradores que contam algo que sabem de Lord Jim, ora em colóquios reservados, ora para grupos de curiosos em saber algo mais daquele jovem inglês mau afamado pela tragédia do Patna. Você entende com esse recurso que é um homem famoso, em diferentes pontos do Sudeste Asiático. Passando pela Oceania e voltando a Inglaterra, fala-se dele.
Ele agrega à narrativa elementos da sociedade oriental da época: a peregrinação dos muçulmanos, a sociedade de castas hindu e sua curiosa relação entre dominadores e dominados, as relações comerciais com a Inglaterra, enquanto maior império do mundo, seguida de outros países como a Holanda.
Conhecemos como é a pirataria moderna, bastante diferente daquilo que o nosso imaginário, impregnado das aventuras do bufão Jack Sparrow, tem uma noção bastante romantizado e distorcida. Apesar de Piratas do Caribe historicamente se posicionar 200 anos antes de Lord Jim, é fato que a popularidade do filme cria um modelo imaginário padrão de pirataria.
É muito interessante verificar que saindo do nosso cronocentrismo imediatista, em Lord Jim já vemos a globalização e seus impactos. Mais lentos, concordo, mas presentes. O comércio marítimo, as viagens, a correspondência e os homens em busca de dinheiro e glória em mundos distantes.
Agora, o que eu mais demorei para perceber e que é o ponto central da obra, é o feito da culpa impossível de ser redimida por alguém jovem demais para entender o que é humildade e perdão.
Jim é orgulhoso e vaidoso, tem sonhos de glória. É muito difícil captar isso por meio de Marlow ou de qualquer outro narrador. Refletindo um pouco mais, percebe-se que Marlow vê em Jim imperfeições de caráter que ele mesmo teve na juventude e precisariam de tempo e maturidade para corrigir. E quem conhece bem a biografia de Joseph Conrad, pode ousar dizer que Marlow é o alter ego do autor dando uma chance a seu eu mais jovem.
Incontáveis dados biográficos de Joseph Conrad sustentam essa interpretação: sua vida no mar de a partir dos 17 anos de idade é a fuga do remorso de não ter lutado pela libertação da Polônia das mãos do domínio russo, sobretudo porque vinha de uma família de patriotas. Inclusive, seu pai foi mandado para um campo de trabalhos forçados na Sibéria por conta da resistência contra os invasores russos. Lamentou por toda a vida de não ter tomado parte disso. Seus patrícios poloneses o acusavam de mau patriota, ao que ele respondia
“É preciso reservar um lugar para o inexplicável se se quer julgar a conduta dos homens neste mundo onde não existe explicação definitiva ... As aparências desta vida perecível são enganadoras, assim como tudo que cai sob o julgamento dos nossos sentidos imperfeitos. A voz interior pode continuar sincera em meio a seus mais secretos conciliábulos. A fidelidade a uma tradição particular pode persistir no decurso de uma existência separada e seguindo fielmente também o caminho que um inexplicável impulso traçou”.
A vaidade de Jim e a culpa o levam ao desespero. Ele foi ingênuo nas negociações com Brown, imprudência fruto da infantilidade de querer e ser amado por todos naquela vila: pelo povo, pela elite personificada em Doramin e por Joia. Ele tem tudo: respeito, admiração e amor e não pode suportar a perda desse conforto psicológico que sustenta a sua existência. No episódio do Patna, a desonra feriu seu orgulho sem matar ninguém. No Patusan, a história foi bem diferente.
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