Violência, imitação, Cristianismo e a natureza humana: Rousseau não tem razão na filosofia de René Girard
- Sheilla Soares
- 20 de mar.
- 11 min de leitura

O texto abaixo é o compilado de uma palestra do filósofo francês René Girard, professor emérito de Literatura Comparada na Universidade de Stanford, na California. A palestra foi proferida na École Normale Supérieure (Paris Sciences et Lettres), na França, em dezembro de 2007.
Em uma argumentação fina, clara e bem estruturada, Girard parte do questionamento à definição de violência como agressão e chega à maior e mais radical diferença entre o Cristianismo e as religiões arcaicas.
O meu trabalho foi o de traduzir suas palavras, não de interpretá-las. Isto o fará aqueles que tiverem o prazer de ler e conhecer um pouco da linha teórica de pensamento desse notável cientista francês.
Ponto de partida: definição de “violência”
Para Girard, “violência como agressão” é uma definição demagógica, visto que, ao assumirmos essa versão, ninguém jamais é o agressor; dessa forma, perpetua-se a ideia de Jean Jacques Rousseau, de que a natureza do homem é boa, mas corrompida pela sociedade, que o torna mau.
Ilustrando com romances, notadamente de Miguel de Cervantes, escritor espanhol, Girard defende que a essência da violência é a rivalidade (violence rivalitaire). Ilustrando ainda com a corte que espécies animais fazem às fêmeas, o professor argumenta que o fenômeno da rivalidade tem como fundamento biológico a imitação do desejo. E é neste ponto que imitar “vai mal”.
Violência e imitação
Gabriel de Tarde, sociólogo francês antagônico a Émile Durkheim, propõe uma teoria da imitação como fonte da harmonia social. Para ele, se as pessoas se imitam, se elas fazem a mesma coisa, elas estão de acordo. No entanto, uma vez que se toca o desejo, imitar o desejo do outro é lutar contra esse outro (Girard utiliza o verbo pronominal “se battre”. Na falta de um verbo com tradução perfeita para o português, indiquei “lutar”).
Indo à Antiguidade Clássica para buscar o conceito de imitação, Girard observa que ninguém chegou a compreender por que Platão a pensava como algo assustador. Em Platão, há uma reprovação à tragédia na medida que ela revela a natureza do que é divino.
Aristóteles, por seu turno, compreende imitação como harmonia social. Ele supera o medo de Platão. Embora reprove nela a condição de uma limitação artística, a imitação para Aristóteles não é perigosa. A partir de então, ela se torna epistemologicamente inofensiva.
O romance e o perigo da imitação
Professor de Literatura Comparada, Girard se vale do argumento literário para sustentar sua tese.
Lançando luz sobre o lado perigoso da imitação, Girard menciona o romance de Gustave Flaubert, Madame Bovary, para ilustrar o perigo da imitação. A protagonista, imitando Paris e os amores parisienses, se dá mal no enredo.
Para Girard, quanto mais inocente a noção de imitação no romance, menos interessante ele é.
Neurônios-espelho
Neurocientistas da Universidade de Parme, na Itália, descobriram os neurônios-espelho na década de 90. Neurônio-espelho é um tipo de neurônio que funciona quando fazemos um ato e também quando observamos um ato. Trata-se de uma descoberta importante em termos de desejo.
Para ilustrar a importância dessa descoberta, Girard menciona a “formidável indústria da pornografia”, na qual o que é central não é a ação nem o espetáculo, e sim o desejo. No caso da pornografia, o desejo mais importante que existe: o sexual. Ora, fazer uma coisa e observar essa coisa se faz com os mesmos neurônios.
Um aspecto que Girard enfatiza sobre a imitação, a partir de evidências de estudo com os neurônios-espelho, é que ela é imediata, portanto, não é aprendida.
Essa evidência revelada pela descoberta dos neurônios-espelho contraria o que preconiza Piaget- e outros psicólogos do final do século XIX e início do século XX-, a saber: a ideia de que o processo de aprendizagem da imitação começa por volta dos dois anos de idade, após o início da representação simbólica do objeto de desejo para aprender a imitar aqueles que se servem desse objeto.
Assim, conclui-se que a imitação não é um fenômeno que exige aprendizado. Ela é ela mesma um fenômeno de aprendizagem para o indivíduo.
Girard exemplifica com a linguagem. A capacidade de aprender uma língua é muito mais forte em que é totalmente incapaz de saber que está imitando, isto é, as crianças pequenas, do que em adultos, que, quando querem aprender uma língua estrangeira, se saem mal, enquanto as crianças o fazem à perfeição.
Características da imitação, segundo ele: (i) a imitação é um fenômeno constante, (ii) a imitação é um fenômeno espontâneo, e, se ela porta sobre o desejo, ela deve ser contemplada para explicar a violência, que é essencialmente de rivalidade (rivalitéure).
Desejo e interdits (interditos)
A imitação do desejo é espontânea.
Há 40 ou 50 anos, começou a se assumir que os interditos culturais, notadamente sexuais, são medidas que advêm do complexo daqueles que os inventam. Para Girard, essa maneira de conceber a antropologia não vai durar muito tempo.
O filósofo argumenta que a França é em grande parte responsável pela expansão dessa ideia do non-sense da cultura baseada sobre os prejuízos que a concebem. Na verdade, é para evitar ameaças que os interditos foram criados. Por exemplo, a ameaça que seria se todos desejassem a mesma mulher. Os interditos buscam impedir toda forma de conflito, de violência.
Instituições totêmicas
Girard reconhece a polêmica que o totemismo incita.
O filósofo exemplifica o totemismo na Austrália, onde cada gênero alimentar é ocupação de um grupo. Esses grupos não têm o direito de consumi-los. Eles são fornecidos aos outros, que não os colhem, somente os consomem. Isso mostra que o produto de que temos medo tem qualquer coisa de divino. Para nós, ele é horrivelmente perigoso, pois é objeto do desejo.
A exogamia também é usada na argumentação de Girard. Para ele, a mulher do grupo é consideravelmente mais perigosa do que a que vem de fora. Todo fenômeno de exo-praxia, ou seja, de se buscar no exterior ao grupo, é sempre uma tendência contra a violência.
Uma prova disso é que há sociedades onde se exporta tudo, até mesmo os cadáveres. Girard diria: principalmente os cadáveres, cujo espólio é alvo indiscutível de disputa material, de violência.
Girard lembra que a noção de violência foi inventada pelos homens modernos. “Somos terrivelmente adeptos de Rousseau”, afirma ele. Mas estamos começando a mudar isso...
A imitação é algo que pode nos unir e nos separar uns dos outros.
O totemismo diviniza objetos. Na verdade, ele é exatamente isso. Essa prática representa um estado arcaico. Ela mostra que a cultura é, antes de tudo, evitar a violência.
Rivalidade e a maldade como essência do ser humano
Coincidência de desejos é concorrência.
A concorrência é boa quando é produtiva e má quando se exagera.
A rivalidade é a violência através da agressividade. Os grandes romances são ricos em rivalidades; os romances ruins são muito pobres nelas.
Girard argumenta que se os neurônios-espelho têm um papel crucial para o ser humano. Sua descoberta e descrição força-nos a assumir que a rivalidade é algo imanente ao ser humano (portanto, a natureza do homem não é boa...); a maldade é uma essência.
Nesse sentido, o neurônio-espelho ajuda a vislumbrar alguns aspectos. Ele é, a uma só vez, a inteligência, porque nos permite imitar, adquirir linguagem, e também uma fragilidade no aspecto da vida comum, comunitária, dada a ameaça da rivalidade, da agressividade.
Bouc émisseure (bode expiatório)
Os mitos da Antiguidade sempre começam por uma crise terrível ou por uma ameaça, em que um indivíduo é responsabilizado e maltratado pela comunidade. Esse indivíduo se transforma em deus, que manipula os interditos sociais.
Esse indivíduo é um bode expiatório, pois todos se unem contra ele, vítima única que não é a responsável pelo que quer que seja. Essa expressão “bode expiatório” corresponde a um rito judaico, em que um bode carrega toda a pesca da comunidade e depois é caçado na natureza.
A esse respeito, Girard publicou um livro intitulado “Le bouc émisseure”. O autor argumenta que há uma tendência mimética a se investir contra alguém do grupo, copiando esse grupo, cuja intenção não é boa. A partir do momento em que se adota um bode expiatório, tudo se passa melhor, pois isso acalenta o espírito humano. Esse bode é sacrificado e cada tem sua parte nessa violência. Desse modo, cada um se sente curado de seu rancor ao olhar dos outros.
Esse fenômeno do bode expiatório pode provocar uma crise social considerável.
Algo semelhante se passa no mito.
O mito de Édipo. Sacrifício. Crise.
Girard afirma que Édipo jamais praticou parricídio ou incesto. Freud é um grande homem, mas ele fez do Complexo de Édipo algo ridículo.
Primeiramente, Freud imaginou que foi o mito de Édipo que inventou o parricídio e o incesto, o que não é verdade. Essas práticas existem por todo lado nas sociedades antigas. Há parricídios, há incestos, há uma mistura dos dois, e é sempre um deus o culpado.
Édipo é uma espécie de deus. Ele é aberrante e reúne uma série de características de herói mítico, que encontramos em outros mitos, seja aberrante ou não. Seja qualquer defeito que atraía a atenção da multidão contra ele. Um antipatia incômoda e que se comunica mimeticamente na multidão. E por que ele se torna um deus arcaico¿ Porque ele passa a uma só vez por culpado e por aquele que salva sua comunidade da violência, que enterra a violência. Portanto, é em torno dele que os fenômenos de evitação da violência vão se produzir. É pensando nesse deus, que pensarão na evitação daquela violência.
Esta é a gênese de René Girard das religiões arcaicas.
Se olhamos para os mitos, eles se parecem todos. Diferenciam-se no tipo de suplício que o herói sofre, de crime nele reprovado, enfim nos detalhes, mas são parecidos nessa estrutura em que a comunidade inteira reúne-se contra um culpado e o massacra. A seguir vem a reconciliação e, depois, vem a divinização dessa personagem porque ele salva. Mas ele é um deus misterioso, pois é muito bom e depois rapidamente se torna muito bom. Ele é o mestre de todos os aspectos da comunidade que são problemáticos, duvidosos, preocupantes, e em torno dos quais os mitos, os interditos e finalmente os ritos nascem.
Um rito consiste a matar uma vítima determinada, um animal, um prisioneiro de guerra, uma criança, um prisioneiro de guerra, um inimigo, um homem de fora. Mata-se essa vítima de maneira religiosa, repleta de piedade, porque acreditamos que essa vítima vai nos reconciliar. Essa vítima substitui deus. Quando uma comunidade e deus se reconciliam, ela fica contente com o que acontece. Ela se diz: conseguimos escapar bem graças a essa vítima. Mas é estranho se reconciliar por causa de uma vítima.
Essa paz, no entanto, não vai durar muito tempo. Ela vai se desgastar. Talvez não tão rápido porque temos receio que tudo recomece. Mas, cedo ou tarde, a rivalidade mimética, nos jovens particularmente, ou nos guerreiros, vai recomeçar.
Consequentemente, essa comunidade saberá que será confrontada a uma nova crise, que arrisca matar muitos cidadãos antes de ser resolvida por uma morte única que vai reconciliar a todos. Essa comunidade vai escolher uma vítima e tentar refazer o fenômeno do bode expiatório, que ela não compreende, mas que ela imita. O nome disso é sacrifício.
Todas as instituições perigosas, como o casamento, o funeral, são cercadas de sacrifício nas sociedades arcaicas. Sabemos que se trata de situações perigosas para a comunidade e multiplica-se as vítimas para se livrar da violência. Procura-se um violência catártica. Não há sociedade sem sacrifício. É risível até hoje não sabermos o que o sacrifício quer dizer.
Os homens sacrificam as vítimas todas juntas em uma harmonia a mais piedosa possível para caçar a violência. Então refaz-se artificialmente a encenação da morte da vítima única, que é a primeira coisa que se passa e que é o nascimento de deus. Não se diz jamais que se matou um deus, mas matou-se uma vítima.
Uma religião arcaica é uma lembrança dessa revelação de uma divindade, somado aos interditos que separam rivais potenciais e os sacrifícios que se esforçam para reconciliá-los.
No entanto, se a coisa se dá dessa forma, esse sistema de desgasta. Nem sempre os sacrifícios colocam medo. Eles param de dar medo. Mas a comunidade sempre recriará uma nova crise, que recriará uma nova religião.
O Cristianismo e a verdade da natureza humana
O Cristianismo reduziu ao mínimo os interditos. Nas sociedades arcaicas não se podia casar com mais de uma mulher. Para compreender por que os sacrifícios desapareceram é preciso observar o drama cristão. E se se observa o drama cristão, pode-se constatar que ele se parece muito com o drama mítico de uma maneira que jamais foi falada.
Ele começa com uma crise, que é a crise do Estado hebreu, que é ameaçado, aterrorizado, suprimido pela ocupação romana.
Cristo é uma vítima que funciona de maneira sacrificial. Trata-se de uma vítima que as autoridades do templo oferecem a Pilatos e ao establishment romano. A multidão, coisa estranha, que sempre esteve a favor de Jesus, que fizeram justamente com que as autoridades não tenham jamais ousado colocá-lo em acusação e puni-lo, o que elas teriam feito, se o tivessem podido, pois ele era considerado um agitador. Ele era um agitador.
De uma só vez, e não sabemos por que, a multidão se une contra Jesus e ele é morto. Ele é crucificado à maneira romana.
Ora, a crucificação nada mais é do que a morte coletiva, contemplada por todos, ainda que nem todos participem dela. Trata-se de uma morte coletiva suavizada, dominada pelo poder do Estado romano.
Girard nos diz que a Antropologia afirma que o Cristianismo é um mito como os outros, que cria um deus a partir de um mesmo tipo de fenômeno. E é evidente que o Cristianismo deveria ter aceitado esse tipo de formulação, mas ele não o fez, ele não teve medo. Ele assume que haja semelhanças, mas discorda que sejam a mesma coisa. E efetivamente não são.
Há uma diferença entre o Cristianismo e o mito que é óbvia, essencial e radical, mas ninguém fala a respeito.
Essa diferença é que o Cristianismo, ao invés de nos dizer da culpa da vítima, da culpa de Édipo- parricídio e incesto- e nós acreditamos nisso, pois acreditamos em Freud. Enquanto isso, o Cristianismo nos diz da inocência completa da vítima. É uma mudança mimética, algo coletivo, como tantos outros.
O cristianismo é a primeira religião a dizer a verdade da morte coletiva, que está no centro. Isso muda absolutamente tudo, não imediatamente, mas a longo prazo, quando começamos a compreender a diferença da inocência da vítima na corrente que degrada pouco a pouco o mito e o torna não crível. Entre nós, esse processo acontece há dois mil anos e de certa forma ele permanece inconsciente.
Nós acabamos de começar a ver a diferença entre o Cristianismo e o mito. Talvez estejamos ainda longe de ver essa diferença colossal que não aparece para nós. Ou talvez consigamos ver através da hostilidade que o Cristianismo inspira no homem moderno. É o Cristianismo que diz: “a culpa é nossa”, no lugar da culpa divina.
René Girard nos deixa com a seguinte reflexão: a diferença prodigiosa entre a culpa de Édipo e a inocência de Cristo. Essa inocência nós sabemos que é verdade a partir do romance, onde compreendemos o que é um mito. O mito não é nada mais que uma boa ou ruim piada, mas que nos dá um culpado, e não que nos reconcilie. Todos precisamos disso: um falso culpado que justifique nosso próprio erro. O Cristianismo não permite somente que a sociedade faça isso, mas impede a cultura humana de fazê-lo.
O Cristianismo, no entanto, não pode sobreviver porque ele diz a verdade sobre a tendência dos homens, principalmente os que vivem em grupo: de tornar inocentes culpados. O que chamamos de nacionalismo é fazer outro país culpado e o seu inocente. E eles se parecem por toda parte.
Nesse sentido, Girard menciona algo que é para ele interessante: a hostilidade da Alemanha em relação à França. Em uma época em que era a França que invadia a Europa, e não o contrário, os alemães diziam da França exatamente o que a França diz hoje sobre os alemães. O mais interessante é sobre a linguagem.
Os alemães diziam que o francês, uma língua latina, é uma língua dura e militar, feita para o comando, as ordens abruptas, uma língua sem sutileza. Evidentemente eles tinham a poesia de Goethe e de Schiller por demonstrar essa impressão. Da mesma forma que os franceses tem Racine e La Fontaine para mostrar a mesma coisa: a dureza da língua alemã para eles.
De um lado e de outro, percebemos que os inimigos dizem a mesma coisa, fabricam os mesmos mitos, nós os repetimos a cada dia para darmos a certeza de que eles são verdadeiros.
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